domingo, 24 de agosto de 2008

Aqui publico, no primeiro dia do primeiro dos festivais en transe, a transcrição das vozes de DI-GLAUBER.
Não está absolutamente completa porque algumas coisas ainda escapam ao meu ouvido.
Um brinde a todos!
Lucas Parente

Di Cavalcanti. Título do filme: Ninguém assistirá o formidável enterro da tua última quimera; somente a ingratidão, aquela pantera, foi tua companheira inseparável.

Filmagem causa espanto e irrita família e amigos. jornal do Brasil, quinta-feira, 28 do dez de 76. primeiro caderno, página 15. filmagem causa espanto e irrita filha e amigo.

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, corta! Agora dá um close na cara dele. Barba por fazer, calça de brim azul marinho, casaco azul claro. Corta, vai recomeçar outra vez. Filmagem causa espanto e irrita filha e amigo. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, corta! Agora dá um close na cara dele. Barba por fazer, calça de brim azul marinho, casaco azul claro, camisa sport quadriculada, sapatos marrons. O cineasta Glauber Rocha está parado ao lado do caixão de Di Cavalcanti no velório do Museu de Arte Moderna.

Carioca Di Cavalcanti
É com a maior emoção
Que este também carioca
Te traz esta saudação.
É de todo o coração!
Poeta Di Cavalcanti
Que este também poetante
Te faz esta sagração.
Amigo Di Cavalcanti
Amigo de muito instante
De muita situação
Nos teus treze lustros idos
Cinco foram bem vividos
Na companhia constante
Deste também teu irmão.
Quantos amigos partiram
Quantos ainda partirão
Mestre pintor Emiliano
Augusto Cavalcanti
De Albuquerque: ou melhor, Di.

Dá distância para filmar dos pés até a cabeça.
Ninguém viu Glauber entrar para iniciar a filmagem do velório e...

Um ano sempre segue a outro ano
Mas, que tem? Se mais humano
Fica um homem (igual a ti!)
Viveste, Di Cavalcanti
Foste amigo e foste amante
Não há outro igual a ti

Agora dá uma panorâmica geral, enquadra o caixão no centro, depois começa a filmar da esquerda para a direita. 1 2 3!

Mandou parar. Di está morto. Só terminaria um hora e vinte e três minutos depois no cemitério São João Batista. Quando Elizabeth, uma amiga da família, pediu a Glauber para parar com esse espetáculo logo, ele explicou: não se preocupa, essa é a minha homenagem a um amigo que morreu. Estou aqui filmando a minha homenagem ao amigo Di Cavalcanti, agora dá licença que eu preciso trabalhar! ...

Juntos bebemos champagne
Nescau, Uísque, parati
Juntos rimos e choramos
No México e em Paris
quantas mulheres amamos
Quantas marias perdi
A muitas eu disse yes
A muitas disseste oui
Nos separamos de tantas
Mas nunca nos separamos
Amigo di Cavalcanti
A hora é grave, é inconstante
Tudo aquilo que prezamos
O povo, a arte, a cultura
Vem sido desfigurado
pelos homens do passado
Que por terror ao futuro
Optaram pela tortura
Poeta di Cavalcanti
Nossas coisas bem amadas
neste mesmo exato instante
estão sendo desfiguradas
hai que luchar, calvacanti!
Como queria Neruda
Por isso pinta pintor
Pinta pinta pinta pinta
Pinta o ódio e pinta o amor
Com o sangue da tua tinta
Pinta as mulheres de cor
Na sua desgraça distinta
Pinta o fruto e pinta a flor
Pinta tudo que não minta
Pinta o riso e pinta a dor
Pinta sem abstracionismo
Pinta a vida e pinta a dor
No teu mágico realismo
carioca di Cavalcanti
na rua do Riachuelo nasceste
a seis de setembro do ano 97
infante foste criado no bairro de São Cristóvão
na chácara do avô materno
...
Nome de avô de pintor!
orgulhoso proprietário do antigo morro do pinto.
Quem sabe não vem de herança o teu amor azulápis?
Logo os bairros se renovam: Botafogo, Glória Hotel, Copacabana e Catete.
O catete de onde nunca deveria ter saído
e ao qual agora voltaste humilde reconhecido.
moraste no hotel central e no hotel de estrangeiros
ambos desaparecidos ontem à tarde
entre os amigos tomavas, com que gosto!,
o melhor uísque do mundo.
Paquetá, um céu profundo
Que não sabe onde acabar
Viu-te muito passear, oh genial vagabundo
Quantas e tantas vezes foste à Europa?
Dize-me, vagabundo, vagabundo!
no ano de 38 em paris te descobri
rimos e bebemos muito nos bares de por ali
lembraste, Di?
Consuelo de sans de perriz
Ia sempre conosco
E mais o sargento tirso
Que uma noite lá por pouco
Não sai no braço comigo
Como foste meu irmão
Como eu fiquei teu amigo
E no México, te lembras?
Com Neruda e com siqueiros
E a linda Maria consolo
Que tenia longo el pelo
Bebemos tanta tequila
Que até dava gosto vê-lo
A comer um prato de tacos
Comiendo
mais de setecentas ruas ungiram tua cabeça
que hoje é branca como a lua
mas continua travessa.
que bom exista esse pintor enamorado das ruas
que bom vivas, que bom sejas, que bom luchas e construas
poeta o mais carioca, pintor o mais brasileiro,
entidade a mais dileta do meu rio de janeiro
perdão, meu poeta, perdão: “nosso” Rio de Janeiro!
....
O Di cavalcanti apareceu na bahia em 1958 ao lado do roberto rosselini, cineasta italiano muito famoso na época, não porque tinha filmado Roma, Cidade Aberta, Paisá, ou outros grande filmes do neo-realismo italiano, mas porque tinha sido casado com Ingrid Bergman, e o seu divórcio, e a fofoca que gerou uma opinião do papa, e o roberto rosselini ficou famosissimo, inclusive aqui no terceiro mundo. E convidado por Assis Chateaubriand, que era um dos caciques das artes brasileiras, inclusive do museu de artes de São Paulo, da TV Tupí Grande Associada do Brasil, convidou Roberto Rosselini para vir ao brasil.

Di Cavalcanti, como Jorge Amado, Oscar Niemeyer, Villa-Lobos, faz parte deste olimpiato modernista que ficou internacionalmente famoso, com amisades em várias partes do mundo. Dai, sendo reporter do Diário de Notícia da Bahia, fui destacado para entrevistar roberto rosselini e lá conhecí Di Cavalcanti, que me apresentou o próprio roberto com a camera 16 mm, saindo pela rua na bahia e filmando rapidamente nos sarcófagos e outros batuques das ruinas portuguesas barrocas da bahia, com uma rapidez impressionante. Nunca vi ninguem filmar tao rapido. Aliás, ali eu saquei realmente o negocio de uma ideia na cabeça e uma camera na mao. Quer dizer, o rosselini, realmente, fazia com uma camera de 16 o que o Di Cavalcanti faria com um pincel. Filmando a sepultá-lo numa lage marmórea dentro do santo antonio, convento do carmo, ali, nao sei direito aonde pela bahia, zona norte, ali, zona cristã.

O que se passa é que o chofer deixou o carro aberto, uma derreagem aberta, escurregão, e o carro desce de costas pela ladeira. Lembro-me agora um filme, um plano que não está no filme, do di cavalcanti, barriga grande, perna aberta, dando uma risada meio desesperada, o carro descendo e o freio de repente.

Isso é verdade, nos conhecemos assim, e depois eu fui encontrar di cavalcanti em 1964 em paris. Eu encontrei lá o poeta vinicius de moraes, que era embaixador da UNESCO ou coisa que o valha. Estava o di cavalcanti que tinha sido nomeado adido cultural do brasil muito interessado em fazer contatos com jean-paul sartre e, aliás, que era amigo dele como de todos os surrealistas franceses, aquela turma do Breton, do cocteau, porque o di transou em todas, e apesar da cirtica brasileira ter negado as suas grandes qualidades, o di cavalcanti na verdade foi um pintor internacional, assim, tao imporatnte pro brasil como picasso para a espanha.

Depois eu vi pouco o di cavalcanti. Uma vez ele me telefonou do Rio pedindo o seguinte : quero que voce venha aqui me filmar. eu nao fui porque nao tinha tempo, estava viajando, em suma, nao deu pé, depois eu vi di cavalcanti ali por 71 num restaurante em paris. estava regina luxemburgo, estavam outros amigos. depois nao vi mais o di, e aquele dia, entao, acordando de manha, recebo o impacto da notícia que o di morreu e resolvi fazer um filme, a palavra de di cavalcanti, a palavra de di cavalcanti, vinicius de moraes escreveu esse poema inédito.

Havia um certo respeito
No velorio do pintor(?)
Todo mundo concordava
Que apesar de gatineiro
Era bom trabalhador
Houve chôro e ladainha
Na sala e no corredor
E por ser considerado
seu desaparecimento
muita tristeza causou

Di por Di - as vozes do tumulo: sou um genio, um velho, uma glória nacional, nao me encham o saco !!!

Um grande sofrimento
Durante muito tempo
Roubou a minha paz
O carnaval que era feito acabou

Di cavalcanti: lirico, romantico, sensual, carioca principalmante...
frederico de moraes, o globo, quarta-feira: di nunca foi um realista!...
emiliano di cavalcanti, que faleceu ontem aos 79 anos depois de longa enfermidade…
…a talvez braque…
…nao bastasse ter sido, segundo seu proprio…
recentemente, aliás, se disse um realista
a talvez picasso
a talvez…
a arte brasileira
a talvez gogan
realizadores da semana de arte moderna no teatro municipal em são paulo, o que desarrumou definitivamente o edifício da arte acadêmica no brasil,
sua própria pintura, sobretudo aquela realizada ate o final da década de 40, pode ser considerada uma das constribuições mais importantes do brasil à cultura visual de nosso século, especialmente no âmbito do continente latinoamericano.
Se a partir da criação da bienal de são paulo em 1951, sua arte começa a declinar em termos simetricamente opostos a Volpi, cujo prestigio é acendente desde o momento que dividiu o ex-eco …
…grandes indagações metafisicas!
…o maior premio da bienal em 1953, trinta anos de pintura, da melhor pintura, sao mais que suficientes para definir o piso de sua…
…a talvez diogo de riveri, sicano!
…contribuição para arte brasileira e continental.
influências:
em tudo o que foi escrito sobre a pintura de di, teremos no capitulo das influencias recebidas, uma arvore genealógica de raizes profundas e distentes e bastante intricada nos seus galhos e ramificacoes…
…alma brasileira!
…existenciais!
…as mais distantes remontam à renascença. O próprio artista confessava seu entusiasmo pelo sensual ticiano e por michelangelo, cuja obra conheceu quando viajou à italia. Ou mesmo um pouco antes com Gioto e Chilarue.
Do barroco foram muitos autores…

Lorival gomes machado diz que a pintura de di cavalcanti é uma expressao que apanhou em sua tessitura vital a realidade brasileira e com tal identidade de essencia, que faz lembrar a milagrosa correspondencia entre o barroco seco de minas gerais e a feição dessa província misteriosa. Talvez se pudesse ir mais longe. Ha algo de semelhante entre a mulatização de Nossa Senhora nos céus da capela franciscana de outro preto, levada a cabo por athayde, e a madonização da mulata na pintura de di cavalcanti…
Um brasil lusitano, africano, indigena, mocarabico!

Esta é a historia de umbabarauma, um ponta de lança africano
Um ponta de lança decidido. Umbabarauma
Só deus sabe o dia de minha morte, se vou entrar um dia para a academia brasileira de letras. Nunca pensei que ser candidato na abl me desse tanta angustia.
A mulata !
Sempre tive pelas mulatas imensa paixao
Outra vez: a mulata ! modernismo, 1922, di cavalcanti, a montagem nuclear, a quantidade está na qualidade!
Sempre tive pelas mulatas imença paixao. A plasticidade da mulata mais a sensualidade inerente à raça negra, e aquele olhar triste, me encantam.
Seu país !

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DOIS TEXTOS DE GLAUBER SOBRE DI-GLAUBER:

1

Quando Di morreu, eu apenas improvisei em cima de fatos. Como eu estava duro, pedi a vários colegas cineastas pedaços de filmes virgens, chegando a juntar 800 metros de colorido. Peguei também uma câmara emprestada do Nelson Pereira dos Santos. (…) Fui ao velório, no Museu de Arte Moderna e ao enterro, no São João Batista. Dirigi o fotógrafo Mário Carneiro na tomada das cenas. Aí já estava decidido a fazer um filme sobre a morte de Di. Uma homenagem de amigo para amigo. As poucas pessoas que estavam lá ficaram chocadíssimas, claro. Diziam que eu estava tumultuando o enterro, estava profanado um ato católico. Não é nada disso. Meu filme é um manifesto contra a morte. Da morte nasce a vida. Di era um homem alegre, um homem que, com toda a certeza, também gostava de enterros. E eu quis, além de prestar-lhe uma homenagem, contestar os princípios fundamentais da lógica.

2

A morte é um tema festivo pros mexicanos, e qualquer protestante essencialista como eu não a considera tragedya . . Em Terra em Transe o poeta Paulo Martins recitava que convivemos com a morte...etc... dentro dela a carne se devora - e o cangaceiro Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, morre profetizando a ressurreição do sertão no mar que vira sertão que vira mar... Matei muitos personagens? Eles morreram por conta própria, engendrados e sacrificados por suas próprias contradições: cada massacre dialético que enceno e monto se autodefine na síntese fílmica, e do expurgo sobram as metáforas vitais. As armas de fogo, facas e lanças são os objetos mortais usados por meus personagens, mas a rainha Soledad bebe simbolicamente veneno no final de Cabeças Cortadas e os mercenários de O Leão de Sete Cabeças são enforcados. Em Câncer, Antônio Pitanga estrangula Hugo Carvana, assim como Carvana se suicida em Terra em Transe. Em Claro foi usado um canhão para matar um mercenário no Vietnam e dois personagens morrem afogados em Barravento, além das multidões incalculáveis massacradas por Sebastião, Corisco, Diaz, etc. Filmar meu amigo Di morto é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condição. A Festa, o Quarup - a ressurreição que transcende a burocracia do cemitério. Por que enterrar as pessoas com lágrimas e flores comerciais? Meu filme, cujo título, dado por Alex Viany, é Di-Glauber, expõe duas fases do ritual: o velório no Museu de Arte Moderna e o sepultamento no Cemitério São João Batista. É assim que sepultamos nossos mortos. Chocado pela tristeza de um ato que deveria ser festivo em todos os casos (e sobretudo no caso de um gênio popular como Emiliano di Cavalcanti) projetei o Ritual Alternativo; Meu Funeral Poético, como Di gostaria que fosse, lui. . . o símbolo da Vida... No campo metafórico transpsicanalítico materializo a vitória de São Jorge sobre o Dragão. E, no caso de uma produção independente, por falta de tempo e dinheiro, e dada a urgência do trabalho, eu interpreto São Jorge (desdobrado em Joel Barcelos e Antônio Pitanga) e Di-O Dragão. Mas curiosamente Eu Sou Orfeu Negro (Pitanga) e Marina Montini, dublemente Eurídice (musa de Di), é a Morte. Meus flash-backs são meu espelho e o espelho ocupa a segunda parte do filme, inspirado pelo Reflexos do Baile, de Antônio Callado, e Mayra, de Darcy Ribeiro. Celebrando Di recupero o seu cadáver, e o filme, que não é didático, contribui para perpetuar a mensagem do Grande Pintor e do Grande Pajé Tupan Ará, Babaraúna Ponta-de-Lança Africano, Glória da Raça Brazyleira! A descoberta poética do final do século será a materialização da Eternidade.