domingo, 27 de abril de 2008

Cinema, rua de mão única.


Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar


Nunca existiu inocência ou pureza no mundo do cinema. À medida que as décadas foram passando vemos aí a vitória da TV sobre o cinema de idéias. Faz-se televisão pobre, comprometida com o mercado, e não cinema. E nós que queríamos que a televisão somasse ao cinema! Mas... não somos cultuadores dos nossos muitos fracassos e traições. Apenas queremos entender essa noção que nos obriga a NÃO questionar a relação entre o mercado ocupado, o capital, a burocracia, as muitas traições e o “novo” cinematelevisivo a ocultar as muitas aberrações do nosso tempo. Mas resolve ficar calado? Quem sai ganhando com o silêncio?


Não falamos como críticos, historiadores, sociólogos ou teóricos, mas como pessoas do cinema brasileiro. Temos um passado e uma história de lutas e confrontos. Sempre lutamos por um país melhor para todos. Lutamos com os nossos filmes contra a ditadura militar. Continuamos lutando por um mercado radicalmente nosso, contra toda e qualquer ocupação estrangeira. Mas logo nos fizeram compreender que não tínhamos um país. Espaço, mercado e postura. Jovens, fomos conhecer Humberto Mauro muito tarde. Mas nos tocaram profundamente “Deus e o diabo na terra do sol” e “terra em transe”.

Glauber espantou-nos com sua linguagem ousada, edificante, poética, anárquica, original e sempre política. Política, mas além dos políticos e partidos. Depois da sua morte o cinema foi transformado num produto insignificante e meloso para o mercado que nunca foi nosso. Era preciso adequar o cinema aos baixos interesses das distribuidoras estrangeiras, num corte radical com a pequena e sofrida história do país. Irrefletidamente não só lhes oferecemos o controle da produção, do mercado e até do próprio rabo numa possível valorização do “nosso” filminho comportado ou nostálgico. E, claro, com a violência sendo usada como espetáculo de intimidação pela via da hipnose. Mas quantas dessas bo$tas se pagaram na bilheteria?


Sempre desconcertados diante da pergunta, desviam-se do foco. Responder para quê? O negócio foi sempre continuar mamando no dinheiro público. Mas quem sabe um dia não acaba se ganhando um Oscar por ser bem comportadinho? Talvez seja o efeito terapêutico necessário no eterno exercício da malandragem. É o nosso exotismo tropical! Dorme-se sonhando com a bunda da perua televisiva. E acorda-se abraçado num bacalhau. Mas foi com “Deus e o diabo” e “Terra em transe” que nos aproximamos com o cinema numa idéia viva de Brasil.

Através de Glauber, foram-se medos, ambigüidades e inseguranças. Cicatrizes visíveis da nossa má formação. Passamos a criticar e combater Hollywood na defesa de Oswald de Andrade, Pixinguinha, Tarsila do Amaral, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, José Celso Martinez Correa, Bazin, Aristarco, Paulo Emílio, Brecht, Godard, Visconti, Bergman, Antonioni, Benjamin, Adorno, Satie, Villa-Lobos, o jazz... e os múltiplos lados significativos, poéticos e solenes da vida. E é esse doce e furioso sopro de vida que nos acompanha até hoje. Ainda assim, não somos melhores ou piores que ninguém. Apenas queremos refazer e entender todas as contradições do nosso duro amadurecimento. Reaprender a aprender para lutar melhor. Um pouco além da culpa, do medo e do velho silêncio obrigatório.

Ainda assim, no fosso histórico da nossa formação, felizmente nunca respeitamos autoridades, sucesso ou os que se acham donos da verdade. Menos ainda nossa lamentável classe política de ontem e de hoje. Mas ultrapassar a mediocridade, a solidão, a religião, a truculência, a caretice... nunca foi fácil. O fecundo desdobramento de um cinema de invenção nunca nos foi confortável. Mas foram sempre os nossos impulsos mais profundos e verdadeiros. Amávamos e amamos trabalhar um cinema de linguagem. Claro que fomos e ainda hoje somos chamados de tudo. Mas não fomos nós quem traímos o cinema e o país.


Introduzimos aqui a expressão traição como a nossa melhor tradição. Mas o que se estava traindo? Repetindo: antes de tudo e mais nada o BRASIL. Depois a verdade. O afeto. A mulher. Os tantos e tantos sonhos realizados ou não. Como todo mundo, cometemos pequenos erros. Nunca nos vendemos como santos além do bem e do mal. Mas também nunca fomos canalhas. Sempre recusamos o sucesso fácil e menor. Os muitos álibis da burocracia em conexão com o poder dos medíocres. O culto à estupidez e à vaidade. Um baixo uso comercial da brutalidade como intimidação e humilhação do espectador... Fomos por outros caminhos. Fundamentalmente por uma resistência sem partido, pois também nunca acreditamos em partido algum. A palavra já diz: par-ti-do.


O Brasil é sempre o mesmo descobrimento. Os que ontem se diziam de oposição, hoje estão no poder. Gordos, velhos e sujos. Mas fazendo o quê? Melhorou alguma coisa? O país saiu da sua eterna obscuridade? É uma idéia v-i-v-a de povo que está no poder ou vive-se apenas a excitação do atraso? Pressentimentos à parte, deixamos de acreditar nas bravatas palacianas. Pertencem a um mundo que não é o nosso. São todos charlatões e fanfarrões falando sempre em nome do povo ou de deus. Como péssimos atores de um novelão que nunca acaba, estão sempre bostejando na TV. Usam a TV como arma militar. A TV é o poder. Poder servindo a deus e o diabo na terra em lama.

O cinema tornou-se uma atividade de mão única. Pelas distorções do mercado e pela imposição ideológica, uma determinação cultural, em qualquer regime. É lógico que todo processo é mais harmônico quanto mais democrático. Mas os tempos são outros. De outra história. Uma continuação da mesma história. Principalmente da nossa, do nosso cinema. E sem mão dupla perdemos todos nós. O cinema e o país. Vale refletir, enquanto a única força que ainda possuímos, invisível e insubmissa, é a cultura. Alguma coisa que ainda pode resistir ao mundo real da materialidade, esta que encanta, fetichiza e domina. A do capital, com alguma atividade ainda necessitando do trabalho, mas não mais do trabalhador! Às corporações, tem bastado o consumo, o lobismo e a corrupção. De difícil resistência para algum governo não totalmente entregue. O que pensamos!


E por que o cinema como resistência, necessidade, vontade e crença? Porque o cinema ainda se constitui em matéria-prima fundamental na fundação de um povo, de uma cultura e de um país. É bom observarmos que quem não resiste, se finda. E os exemplos são infinitos. Assuntos para outra matéria a ser pensada. Os nossos aliados para uma arrancada do nosso cinema estão prenhes: de esperança, de vida, de vontades, de oportunidades. São este país e gostam dele. Mas, pelo completo estranhamento, estão ausentes de nós. E de tudo que é nosso. Nossa vontade de ser. Cinema, gente, país! E estamos com pouquíssimas opções! Somos entulhados e ao mesmo tempo despojados de bens materiais e culturais indispensáveis, para uma outra grade além da mídia e do controle dos bens de produção, onde a maior e mais importante foi sempre a cultural, histórica e formadora.


Um poeta latino não teve medo de afirmar que o Império Romano se derrotava ante a cultura grega. Aforismo que nos alerta sobre a fragilidade e o possível fracasso das democracias! O perigo da mão única! Sempre nos omitiram os perigos e os sacrifícios necessários na construção de um país, com o poder, os partidos e as instituições servindo sempre de mediadores para mais acesso aos privilégios, criando facilitários e a base fisiológica, como hoje, para nada mudar; fazendo da dura realidade, aparências! O que não suportamos mais, oprimidos pela descrença, a violência e o caos! Os grande lutadores de uma certa idéia de Brasil estão ficando cansados e sem mais apelo. Deixam as cátedras, perdem o trabalho, se isolam caindo no esquecimento, quando não vão para o túmulo pela tristeza.


A falta de espaços e a censura corporativa têm sido mais brutas que no período militar. E um país e um bom cinema não se fazem sem o conhecimento da história, da nossa história, e de nós mesmos. Para sabermos se é isso o que queremos: de nós, para nós e para os outros. Alexandre, ao conquistar um Império, tentou levar com ele a cultura grega, o que não foi possível. Cultura e país não se universalizam como produtos. Cada um se torna responsável por sua construção que, antes de materializar-se, deve carregar uma paixão, o invisível, as subjetividades, introjetados como força única e transcendente como representação do ser. Hoje não se luta por nada. A não ser para pagar contas e se dar bem como um contraponto do nada. E o cinema? Um cinema Brasil?

Nossa opção foi sempre quase nenhuma. Desde o nosso começo. Os pioneiros fizeram o que puderam, a sua parte. Mas também de um começo, vitimados! O cinema não nos chegou sozinho, esteve sempre acompanhado e bem policiado, como agora.

Nossa história sobre esses princípios é rara e superficial, porque feita pelos vencedores; no entanto, não podemos prescindir dela. É um alerta e um caminho. E uma advertência! Os inimigos não morrem. E o nosso cinema precisa construir uma consciência de si mesmo se quer sobreviver. Estamos sendo destruídos a céu aberto e precisamos nos preservar nos subterrâneos. Com as nossas diferenças e com a construção de uma estrutura básica, a que sempre tivemos: o público. Mas sem seguir ou competir com Hollywood. Roliúde é uma existência, uma história, uma ideologia militarizada. Nós ainda somos uma idéia de cultura, de povo, de país. Nossa concorrência e competição são cultural e histórica, embora tenhamos que trabalhar o mesmo mercado. Com outra estratégia, com outras condições objetivas em face da conjuntura sempre desfavorável e ameaçadora não nos deixando saída, como agora.


Além de uma estratégia política, não podemos descartar a que nunca trabalhamos como devíamos, incapazes da compreensão das contradições antagônicas de muitos interesses da luta de classes e de nossa própria incapacidade. Como o problema se tornou mais geral, com dificuldades muito comuns e sem saída particular, a estratégia é também de sobrevivência. A globalização e o domínio das corporações concentraram dificuldades e acentuaram dispersões. Pelo cansaço, a descrença e a entrega! E o nosso grande aliado (se bem trabalhado e amado) é o espectador. Este público que nunca abandonou o cinema brasileiro, fiel a uma boa política de aproximação e proteção do que é nosso: força cultural e movimentos associativos de participação visando respeito, reciprocidade e cidadania. Estratégia somente possível através de algum controle dos meios de produção e da cultura, e com canais específicos para este trabalho: com os já existentes e com os que se estão criando. Com a produção de bons filmes e uma boa rede de cinemas, presentes em áreas populares como clubes, igrejas, escolas de samba, bairros operários...

Com mais esta vertente e com a rua de mão única duplicada, a elite conciliatória e que nunca quis mudança alguma, seguirá a sua história, enquanto tentamos a construção de outra, esperando que ambas se encontrem antes do infinito. Ainda somos uma bela unidade nacional, sem divisões territoriais sustentáveis, como as da violência e miséria, e com o cinema interpolando e interagindo, como vetor de todas as áreas da arte, do conhecimento e dos movimentos culturais, políticos e sócias. Sabendo também que o pensamento e a arte, entre nós, não são grandes forças de atuação política para mudanças. Só para o continuísmo; enredadas e emparedadas ad perpetuum, transformados pela ideologia dominante em puro objeto mercadológico descartável. Com algum valor de uso e nenhum de troca. O cinema brasileiro tem que ser visto como brasileiro. E aceito como tal.


Pensamos um cinema sem forçar o imaginário popular e coletivo, sem impor hegemonia; uma relação de construção e convivência, respeitando diferenças. Sempre sustentado por um processo democrático, ativo, participativo e em eterna construção. Ora, expressar uma atividade cultural é um ato político e ideológico, e o queremos mais popular, mais social, como definia Gramsci. Uma possibilidade para qualquer cidadão. Uma extensão estética.


Vivemos uma era de perdas e de desconstrução do humano. De externalizações coletivas. Seremos de fato cidadãos? A força e a significação de alguém está naquilo que ele é, faz e produz. Em seu trabalho. Esta é a nossa natureza. A natureza do nosso cinema - uma rua de mão dupla infinita. Muitas direções para o nosso cinema, que nunca será demissionário sem saber o que ocorre com ele! A luta é esta e continua. Lutemos!

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