“tudo é terrível. tudo é espantalho, espantável. tudo ameaça precipitar tudo e todos. tudo consegue retornar ao princípio e ao fim. tudo é político, elíptico, oblíquo, ambíguo. tudo é marítimo, árido, rochoso, ventoso. tudo é tangente ao labirinto da sensação e da consciência. tudo é desagradável. tudo é futuro ou pré-histórico.”
Murilo Mendes
Nada mais parecido com uma ruína do que um prédio em construção. Não me lembro de quem é essa frase. Mas sei que é minha.
Minha mulher-mãe fez plástica esses dias. Parece que muitos não percebem a beleza das rugas. Me divorciei-nasci.
imagem-ruína e imagem-plástica. a ruga e o botox.
Os japoneses falam de “saba”, o que, segundo Tarkowsky, significa aquela marca do tempo nas coisas. É, cinema é isso – para além dos ícones –, índice, perfuração luminosa do tempo. mas me parece que a ferramenta pode ser utilizada também para esconder esse mesmo envelhecimento.
Ao ver "A lira do delírio" vemos a morte e a passagem do tempo a cada instante. Anecy Rocha dá um adeus no elevador em que morreu logo em seguida.
Carlos Reichenbach fez “Amor, palavra prostituta” se utilizando d’uma película envelhecida. O filme saiu de um amarronzado como luvas de pelica furada para suas mãos opaca.
Com a tecnologia digital isso se torna difícil. Uma mini-dv envelhecida produz é quebras de time-code. No entanto, não quero ser saudosista nem um pouco, pois costurando embalagens plásticas poderei produzir um monstro super-foda. O som sempre estoura em algum momento, há um quê de perfuração no esbranquiçado do estourado digital, sujeira pixelada; tenho filmado em 1ccd super-tosco, não acredito em memória digital; isso tudo apesar da possibilidade de fusões em perfeição.
A volta das imagens de arquivo e a tara pela marca do tempo na película, pelos traços e traças de tempos passados. Os brechós, as ruínas, o retrô. Me parece que o novo anda cada vez mais démodé e o futuro no passado arruinado. (Os dinossauros impediram por 150 milhões de anos o avanço mamífero. Nós impedimos o dos insetos gigantes.)
A plástica, uma forma de morte que não se quer natural, passa por mais aterrorizante que muitas das feridas purulentas. Se querendo acética também agride. Marca para mascarar a marca. Carimba artificialmente para apagar as pegadas do tempo.
malha, marca, mácula, mancha, todas essas palavras têm a mesma origem suja e sanguínea.
Se o sexo deixou de ser tabu nesse último século, o homem tem tentado cada vez mais distanciar a morte de seu cotidiano.
A história é cheia de dobras. A política higienista parece estar voltando aceleradamente, renascendo do final do século dezenove e início do vinte. Os séculos viram novamente. De um lado as ruínas, os terrenos baldios, do outro Ipanema, as passarelas, a capital da plástica (me perdoem os carioquismos). Pois é: vendo hoje as ruínas de amanhã. A plástica numa época de pós-necrológio.
Todo mundo morreu. Bergman, Antonioni, Guará, Sganzerla, Deleuze, Baudrillard, Fidel. Faltam agora Caetano Veloso e Gilberto Gil. Toda inocência foi pelo ralo. Hoje em dia é tudo mais do que raso, é liso, tão polido que escorrega, não chega a lugar nenhum. Mas há de haver alguma positividade nisso tudo.
Vejo “lições da escuridão” de Herzog e penso na possibilidade que tem o cinema de transformar um acontecimento presente numa visão do futuro. Um documentário que faz do atual virtual. Ali, quando o alemão filma a guerra do Kuwait, não temos Kuwait, mas Terra, não temos americanos contra iraquianos, temos seres humanos em guerra, não temos década de noventa, mas tempo indeterminado, não temos presente em conflito, mas futuro em apocalipse. Não há mais distinção entre ficção e realidade devido justamente ao avanço tecnológico-comunicativo que engole tudo o que há no mundo. No filme o distanciamento é tal, o sublime é de tal maneira atingido através do belo, que assusta. A implosão da ética nos filmes do alemão nos lembra os personagens de Joseph Conrad em luta contra a natureza, os colonizadores ingleses que em situações-limite se desmascaram em meio a um mar bravio, o abandono da justa-medida, da temperança, da sacralidade mnemônica, da moral, rumo à sobrevivência animal e nada mais.
Apocalipse now. Aguirre. O ser humano como máquina de matar aliada à tecnologia robótica. A palavra “robô” vem de “trabalho” em tcheco.
Pois é, os alemães e os japoneses souberam trilhar por entre as ruínas de seus países. Bem sucedida mescla de ruína com plástica norte-americana.
Apesar desses filmes, ainda me assusto ao dizer que acho bela a guerra, a destruição em massa, a miséria, a ruína. Será que é tão difícil assumir a beleza futurista de nossas ruínas? Me peguei um dia dizendo que acho lindo o Fundão. O Fundão é uma área zumbi da cidade do rio de janeiro, onde temos uma vista 360 graus de favelas e mangue, guindastes e podridão sem fim. É o futuro. Algo como que dez vezes a vista que se tem do rio da prata de um parque municipal (que não me lembro o nome) em Buenos Aires. Há algo de pré-histórico ali. Uma morte latente, cotidiano em decomposição, lixo tóxico, uma beleza imensurável. Uma vista panorâmica que, apesar de ocupada por seres assassinados a cada dia, possibilita uma visão distanciada da miséria.
Sei o quanto é complicado dizer tudo isso. Justamente por causa dessa distância, dessa mentalidade pós 68 (pra mim o futuro nasceu num duro parto entre 68 e 77, mas isso é outro texto). Mas quando assumiremos a decadência como positividade? Será que é tão anti-ético assim assumir o apocalipse, o lado carnívoro e efêmero do ser humano em suas últimas conseqüências? Ou será que esse radicalismo não pode nos levar a um verdadeiro otimismo?
(Me parece que o lance é contrapôr esse elogio à pós-modernidade a um plano grotesco, carnal, aproximado. a favela da maré vista da linha vermelha contra a favela da maré vista da favela da maré. de um lado o presente belo e distanciado pela estética do apocalipse. e de outro o presente carnal e efêmero, direto. um se sublimando no outro (?). senao corremos o risco de cair nós também na política de higienização. a nao ser que produzamos uma imagem distanciada sim, vista de dentro do carro, mas ao mesmo tempo suja completamente suja, com o som do rádio distorcido, atingindo um plano geral e contaminante sem mediação através do belo.)
a plástica e a ruína. a ruína plastificada e plástica arruinada.
A América. A América é um prédio-ruína em construção-demolição. “uma mesa com uma rosa que simultaneamente floresce e murcha, o sol que, na mesma paisagem, simultaneamente nasce e se põe” (Benjamin). “A América foi definida ironicamente como sendo um “país”que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização. Esta fórmula poderia ser aplicada, com mais propriedade, às cidades do novo mundo. Sem se deter na maturidade, passam do novo ao decrépito.” (Lévi-Strauss).
Fortaleza é pra mim tudo isso. Lusco-fusco + desigualdade, indeterminação + contraste. Luminosidade que não se sabe se de amanhecer ou de anoitecer, se de noite ou dia. Síntese dessa esquizofrenia sem tempo e sem mapa. Dualidade entre um passado arcaico de cidade interiorana, entre pescadores, vaqueiros, e arranha-céus desabitados frente ao mar. Esquecimento e memória. Concreto, asfalto, ferro e vidro x mangue, maresia e duna. Novo mundo. Me lembro do conto do Scott-Fitzgerald que fala de um ser que nasce com 80 anos e que ao invés de crescer, vai diminuindo até que o espermatozóide se separa do óvulo.
Novo mundo. A busca pelo corte no tempo. Pelo imemorial. Um território desterritorializado, estrangeiro, uma temporalidade atemporal. Cesura. Planos sem mapa. Constelação de países, estrelas conectadas por associações psicológicas inconscientes e xamânicas.
O Brasil passou do colonial ao pós-moderno sem ter conhecido o século dezenove e sua civilidade. O esquizofrênico, o híbrido, multi-étnico-cultural, multi-ethos, o consumismo, tudo isso já havia aqui, no novo mundo, há séculos. Os ibéricos inventaram a colono-globalização. O mendigo colecionador de eletrodomésticos. O senhor de escravos consumidor de artigos de luxo importados. A hybris pós-moderna. A ausência de silêncio e de sacralidade. Ta tudo torto!, já dizia Zé Trindade.
Agora, no Brasil, depois de tanto palavrório, vejo a busca pelo silêncio. Mas isso é também outro texto.
E Hegel fala de um sol que avança rumo ao ocidente. O sol da civilização. Dos sumérios aos americanos, passando pelos egípcios, gregos, romanos, franceses e ingleses. O que não compreendeu é que o início se mesclaria com o fim quando da volta operada pelo globo. O ocidente chega um dia que vira oriente. Mas nem deu tempo para o sul dominar o mundo!
Chega de bobagem.
...
LUCAS PAReNTE
1 comentario:
Lucas o texto está do caralho. É isso, essa nossa não-civilidade é nosso guia e ainda nos mantém canibais como sempre foi e nunca vai deixar de ser (sem falsos pessimismos).
Abraço brody!
Ythallo
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